ABRIL DE 1974 - Memória dos anos setenta:
O NOSSO AMARCORD




[Imagem cedida por Victor Valente. 2004 ]



Amarcord. Frequentava o primeiro ano da escola primária e media cento e dez centimetros. Trinta e um anos após o 25 de Abril opto por um tom evocativo do espírito da época, misturando os pequenos nadas da vida de todos os dias com o grande acontecimento, a revolução dos cravos, que começou às 22h55 de 24 de Abril de 1974 e terminou, digamos, na noite de 25 de Novembro de 1975.



[Imagem cedida por Victor Valente. 2004 ]




[Imagem cedida por Victor Valente. 2004 ]



Anos setenta. Os meados e fins dos anos setenta foram para mim, e para a maioria dos pais dos meus alunos, a aventura da escola primária. Possivelmente passavam as tardes a jogar à bola ou a correr pelas ruas.

Abril de 74 é o meu «Amarcord». É a televisão a preto e branco, os desenhos animados do «Vickie», a «Gabriela, Cravo e Canela», o «Espaço 1999»; são as brincadeiras infindáveis pela noite dentro para chegar a casa enegrecido de tão sujo que ficava (os jogos de bola combinavam-se assim: «muda aos seis, acaba aos doze»). Por vezes os gritos de «os ciganos vêm aí!» faziam-nos fugir rua acima.

Verão Quente de 75. Pelo meio as manifestações, das quais só me lembro de um imenso mar de pernas, ou o dia em que uns dez milhares de operários da Lisnave subiram a encosta para defender, com um cordão humano, o quartel de Almada ameaçado de bombardeamento por voos rasantes da Força Aérea - várias vezes houve o risco de uma guerra civil. Após a tempestade política do Verão Quente de 1975, a calma surge com a intervenção militar de 25 de Novembro de 1975.



[Imagem cedida por Victor Valente. 2004 ]




Em 1974 Lisboa era uma cidade pequena, pobre e triste. As barracas, os bairros de lata, eram imensos e cresciam à volta da capital. Ao «Amarcord», de Fellini, podemos somar um pouco, muito pouco, do «Gato Preto, gato Branco» de Emir Kusturica. Fiquei com uma excelente impressão desses tempos...

"Lembras-te das associações de estudantes? As associações nesses tempos funcionavam como viriam a funcionar alguns partidos que então não existiam, a pulso, com muita vontade e muita militância de uns, alguma ambição dos que consideravam estar no ensaio geral da vida ou mesmo de outra época que acabaria por vir, da política, com P grande, dos empreendimentos medidos e negociados, das actividades que incluem outros que não sabem perfeitamente o que estão a fazer ou porquê, se bem que julguem saber para quê.

As associações de estudantes eram metros quadrados de caves com um ritmo irregular, muito intenso nas alturas das greves, quando se avizinhava uma luta ou uma realização cultural, muito mais lento nos dias normais - um espaço pouco familiar à maior parte dos estudantes, a que se apegavam os activistas nelas vivendo tumularmente, mas irradiando uma cultura solar de manifestos, de verdade, de divulgação de ideias justas, da coragem que se inscrevia nos grandes cartazes a vermelho e negro em papel de cenário de cor crua e rugoso, nas ceras donde se reproduziam milhares de exemplares, nos pequenos jornais mensais.

Aí aprendemos a manejar as tintas planas e as letras desenhadas, a paginar em pequena escala, a escrever coisas impessoais."

[ DIONÍSIO, Eduarda - Retrato dum amigo enquanto falo.
Lisboa : Quimera. 1988
resumo, tabulação e negrito no texto por Geografismos ].



[Imagem cedida por Victor Valente. 2004 ]